Lucas
Capítulo 6

  • O Senhor do Sábado
  • 1. E sucedeu que, no segundo shabat após o primeiro, ele passava pelos campos de milho; e os seus discípulos iam arrancando espigas de milho e, esfregando-as com suas mãos, as comiam. Lc 6:1
    Jesus e seus discípulos estavam em jornada de ministério, e passando por uma plantação de cereais, como era permitido pela Lei (Dt 23.25), colheram algumas espigas para delas se alimentarem. Mas, as autoridades judaicas os censuraram por estarem agindo assim durante o shabbãth (sábado judaico, que significa no hebraico original: tempo de paz, misericórdia, adoração ao Criador, gozo espiritual e descanso), Jesus então vai lhes explicar que perante a Lei, atos de misericórdia (como este e os que se seguirão), não apenas são permitidos, mas obrigatórios e prioritários sobre qualquer outra lei (Jo 7:23 -24; ver Mc 2.14).
  • 2. E alguns dos fariseus lhes disseram: Por que fazeis o que não é lícito fazer nos dias do shabat?
  • 3. E Jesus, respondendo-lhes, disse: Não lestes o que fez Davi quando estava com fome, ele e os que estavam com ele?
  • 4. Como ele entrou na casa de Deus, e tomou e comeu os pães da proposição, e deu também aos que estavam com ele, dos quais não é lícito comer senão aos sacerdotes?
  • 5. E dizia-lhes: O Filho do homem também é o Senhor do shabat. Lc 6:5
    Nem Deus nem os doutores e intérpretes da Mishna (tratado das interpretações das leis sagradas judaicas), condenaram a Davi por esta transgressão (Mt 12:4 -8; Mc 2:23 -25). Davi foi orientado por Deus para agir daquela maneira, a fim de preservar sua vida e a de seus companheiros para servir ao Senhor. O mesmo Deus do Shabbãth (sábado judaico), tem o direito, como Autor do mandamento, de interpretar suas exceções, não sendo engessado pela Lei, mas tendo-a sob o controle absoluto da Sua vontade. Essa é a flexibilidade divina que se move em função da misericórdia e do amor.
  • 6. E aconteceu também em outro shabat, que ele entrou na sinagoga e ensinava; e havia ali um homem que tinha a mão direita atrofiada.
  • 7. E os escribas e fariseus observavam-no, se ele o curaria no dia do shabat, para que eles pudessem encontrar uma acusação contra ele.
  • 8. Mas ele conhecia os seus pensamentos, e disse ao homem que tinha a mão atrofiada: Levanta-te, e fica em pé no meio. E ele levantando- se, ficou em pé. Lc 6:8
    Num claro gesto de contraste em relação aos líderes religiosos, que sorrateiramente foram espionar seus procedimentos, Jesus age abertamente e sem receio. Pede para o homem sair do seu lugar e vir para o centro do salão de cultos da sinagoga, onde todos poderiam ver e ouvir claramente o que se passava. Aquele que segue a Cristo deve ser sincero, franco e corajoso (Mt 5:34 -37; Tg 5.12).
  • 9. Então, Jesus lhes disse: Eu quero vos perguntar uma coisa: É lícito no dia do shabat fazer bem, ou fazer mal? De salvar a vida ou de destruí-la?
  • 10. E, olhando para todos em redor, ele disse ao homem: Estende a tua mão. E ele assim o fez, e a sua mão foi restaurada, sã como a outra.
  • 11. E eles ficaram cheios de furor, e uns com os outros conversavam sobre o que eles poderiam fazer a Jesus. Lc 6:11
    Jesus já havia suportado muitos ataques e provocações dos fariseus, escribas e líderes religiosos (todos também líderes políticos). Então Ele inverte as posições e passa a questionar seus oponentes e a todos na sinagoga (Mc 3.4). As autoridades judaicas ficaram furiosas, pois não conseguiram resistir ao raciocínio brilhante, simples e cheio de compaixão do Senhor. E por isso, começaram a planejar um meio de eliminá-lo (Jo 5.18; ver Mc 3.6). Os líderes religiosos precisam ter cuidado, pois a religião, muitas vezes, transforma a justiça em transgressão, e o ilícito (planejar a morte ou a exclusão de um inocente), num ato legal perante a lei (os estatutos).
  • A Escolha dos Doze Apóstolos
  • 12. E aconteceu que, naqueles dias ele subiu ao monte para orar, e ele passou a noite toda orando a Deus. Lc 6:12
    Para o próprio Filho de Deus encarnado, a oração era a pe/neita comunhão com o Pai. Por isso, Jesus, freqüentemente se dedicava a longos períodos de oração, muitas vezes em jejum, especialmente quando precisava tomar uma decisão importante. O fato de Jesus dar tanta atenção a esse diálogo com Deus, deve nos servir de inspiração. Jesus passou aquela noite inteira em oração e ao raiar do dia saiu para escolher, segundo a vontade soberana do Pai, aqueles discípulos que – cada qual com a sua contribuição – seriam responsáveis pelos alicerces da Igreja (Ef 2.20), tarefa que desde o início foi distribuída a um grupo de cristãos e não exclusivamente a uma pessoa.
  • 13. E quando já era dia, ele chamou a si os seus discípulos; e escolheu doze deles, a quem também deu o nome de apóstolos: Lc 6:13
    A expressão em aramaico (o dialeto hebraico que Jesus falava), aqui transliterada por Shaliah, quer dizer “apóstolos” (em grego: ajpostovloud), e se refere a alguém que recebeu comissão e autoridade explícitas daquele que o enviou, todavia sem o poder para transferir seus atributos para outra pessoa. Ou seja, “enviados com uma missão específica” (Mc 6.30; 1Co 1.1; Hb 3.1). Entre a multidão que veio ouvir ao Senhor naquele dia, havia um grupo que o seguia regularmente e se dedicava aos seus ensinos, havia ao todo cerca de 72 homens, considerando que esse fora o número de missionários que Jesus enviou em missão evangelística (Lc 10.1,17). Mais tarde, logo após sua ascensão aos céus, cerca de 120 cristãos o aguardavam e adoravam em Jerusalém (Atos 1.15).
  • 14. Simão (a quem ele também chamou Pedro), e André, seu irmão, Tiago e João, Filipe e Bartolomeu,
  • 15. Mateus e Tomé, Tiago, filho de Alfeu, e Simão, chamado Zelote,
  • 16. e Judas, irmão de Tiago, e Judas Iscariotes, que também foi o traidor. Lc 6:16
    Bartolomeu é o outro nome de Natanael (Jo 1.45). Judas, filho de Tiago (Atos 1.13), é chamado de Tadeu por Mateus e Marcos. Todas as três listas citam Pedro em primeiro lugar e Judas Iscariotes no fim. O nome Iscariotes quer dizer: “homem de Queriote”, sua cidade natal. Judas foi o único não galileu entre os Doze. Todos os evangelistas mencionam o ato de traição de Judas. Somente Lucas ressalva que ele “se tornou traidor”, mostrando que alguém pode começar bem, mas terminar mal. Contudo, enquanto há vida, há tempo para o arrependimento, como ocorreu com Pedro, que também traiu ao Senhor mas se arrependeu e recebeu o pleno perdão de Deus (Mt 26:71 -45; Jo 21:15 -19).
  • Bênçãos e Ais
  • 17. E, descendo com eles, parou em uma planície, e na companhia de seus discípulos, e uma grande multidão de povo de toda a Judeia e Jerusalém, e do litoral de Tiro e de Sidom, que tinham vindo para ouvi-lo, e para serem curados das suas enfermidades, Lc 6:17
    É importante notar que Jesus teve um tempo particular com seus discípulos, no alto da montanha (Mt 5.1) e, em seguida, desce para o planalto (ou planura), onde exorta a todos os fiéis na multidão, e aos discípulos em particular, a terem uma vida na terra verdadeiramente à imagem de Deus (imago Dei), testemunhando ao mundo caído o projeto original de Deus para a humanidade. Jesus proferiu naquele dia uma de suas mais profundas mensagens em relação ao comportamento do verdadeiro filho de Deus: aquela pessoa que crê e é dirigida pelo Espírito do Senhor. O chamado Sermão do Planalto, registrado resumidamente, sob a ótica de Lucas, é o mesmo e conhecido Sermão do Monte ou da Montanha (Mt 5 a 7). Curiosamente, partes do sermão descrito por Mateus, podem ser encontradas em várias passagens de Lucas (Lc 11:2 -4; 12.22- 31, 33, 34), o que demonstra o esforço de Jesus em fazer com que os crentes (da sua época e do futuro) compreendessem, com clareza, o âmago do Evangelho e da vida com Deus.
  • 18. e os que eram atormentados por espíritos imundos, e eles eram curados.
  • 19. E toda a multidão procurava tocar-lhe; porque saía dele virtude, e curava a todos.
  • 20. E ele levantando os olhos para os seus discípulos, disse: Abençoados sois vós, os pobres; porque vosso é o reino de Deus. Lc 6:20
    As beatitudes, bem-aventuranças ou ainda bênçãos de felicidade, não se restringem à pobreza material (Lc 6.20) e à fome física (Lc 6.21). A narrativa de Mateus revela que Jesus referiu-se à pobreza “em espírito” (Mt 5.3) e à fome “de justiça” (Mt 5.6). A arrogância e a utilização de quaisquer meios para se atingir a um fim almejado, parecem ser características demoníacas incorporadas pela humanidade desde a Queda (Gn 3). Nos versículos seguintes Jesus apresenta o verdadeiro mapa da felicidade: A humildade que troca os bens deste mundo pela herança incorruptível de Cristo (Fp 3.7,8; 1Pe 1:3 -9); a fome que privilegia o Pão do Céu em relação ao alimento físico (Lc 4.4; Jo 6.35); o arrependimento que lamenta profundamente o pecado a ponto de abandoná-lo (2Tm 2.19); a piedade que se espelha no exemplo de Cristo, provoca – nos mundanos e falsos religiosos – o mesmo ódio que o crucificou (2Tm 3.12). Em suma: Todo sacrifício por causa de Jesus Cristo e sua Igreja terá sua recompensa (prêmio, galardão) aqui mesmo na terra, assim como no céu. O verbo no original grego indica que a ação se passa no presente e se estende por todo o futuro: “vosso é o Reino” (no original grego: uJmetevra ejsti;n hJ basileiva).10 Jesus não está falando da pobreza em si, pois ela pode ser tanto uma maldição quanto uma bênção. Jesus está se referindo à pessoa dos discípulos. Devem ser mesmo pobres (humildes), conscientes de que não têm recursos e que dependem de Deus para realizar absolutamente tudo. Esse é o sentido que o AT dá a esta expressão, muitas vezes equivalente a “piedosos” (Sl 40.17; 72.2,4). Mateus ressalta o significado de “pobres de (ou em) espírito”. Os arrogantes, aqueles que se acham “ricos” e, portanto, confiam sua estabilidade aos recursos financeiros e materiais que possuem, desenvolvem freqüentemente uma auto-estima além do normal (complexo de superioridade), menosprezando e usando as pessoas das quais se aproximam. Como se habituam a comprar e conseguir tudo o que desejam, não conseguem receber a Graça do Reino, da qual os pobres e humildes tomam posse com grande alegria e louvor a Deus.
  • 21. Abençoados sois vós, que agora tendes fome; porque sereis fartos. Abençoados sois vós, que agora chorais; porque haveis de rir.
  • 22. Abençoados sereis quando os homens vos odiarem, e quando eles vos separarem da sua companhia, e vos insultarem, e expulsarem o vosso nome como mau, por causa do Filho do homem.
  • 23. Regozijai-vos nesse dia, e salteis de alegria, porque eis que é grande a vossa recompensa no céu; porque de maneira semelhante faziam os seus pais aos profetas. Lc 6:23
    Nesta passagem, Jesus não está ensinando sobre a questão do sofrimento universal, mas refere-se a um tipo de sofrimento específico: “por causa do Filho do homem”. Ou seja, o preço da humilhação, perdas e dor, que o discípulo de Cristo paga por desejar viver uma vida digna do Senhor, num mundo comandado pelas forças de Satanás, que influenciam o sistema geral de valores e a moda (o estilo de vida) de todos os povos e culturas do planeta. Contudo, aqueles que sofrem por esse motivo devem muito se alegrar, pois já são considerados por Deus como: bem-aventurados (no original grego: benditos, felizes). Pois foram escolhidos, assim como os profetas do AT, para testemunho vivo da ignorância e da perdição humana em contraste com o amor e a sabedoria de Deus.
  • 24. Mas ai de vós que sois ricos! porque já recebestes a vossa consolação.
  • 25. Ai de vós que estais fartos! porque tereis fome. Ai de vós que agora rides! porque haveis de lamentar e chorar. Lc 6:25
    Somente Lucas cita os “ais” de Jesus em relação à rebeldia instalada na alma dos seres humanos, inclusive nos religiosos. A expressão original no grego é: oujaiv, e indica profundo lamento por uma desgraça que poderia ser evitada. Jesus se refere aos “ricos” (pessoas presunçosas e arrogantes, que depositam sua fé nos bens financeiros e materiais que são capazes de conquistar a qualquer preço), e lhes garante que já receberam toda a recompensa que merecem. Jesus usa um verbo freqüentemente empregado, em sua época, em recibos de pagamento, significando: “Integralmente Pago!” Quando tudo quanto uma pessoa tem é a sua riqueza mundana, estamos diante de um ser humano muito pobre mesmo. Jamais devemos confundir conforto material com bem-aventurança (felicidade).
  • 26. Ai de vós quando todos os homens falarem bem de vós! porque assim faziam seus pais aos falsos profetas.
  • O Amor aos Inimigos
  • 27. Mas a vós que ouvis, eu digo: Amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam;
  • 28. abençoai os que vos amaldiçoam, e orai pelos que vos maltratam. Lc 6:28
    O principal objetivo de Jesus, especialmente neste sermão, é conscientizar seus discípulos de que eles são filhos do Amor e devem ter amor incondicional. Essa é a essência de Deus e do homem, todavia a alma dos seres humanos está ferida de morte desde a Queda (Gn 3), e tornou-se arrogante, revoltada contra Deus, egoísta, ímpia, amargurada, insegura e desesperada. Quando o Espírito Santo é recebido em nossos corações, uma transformação radical se inicia (conversão), o homem sai de si mesmo, e, neste sentido, da influência escravizadora de Satanás, volta à comunhão (amizade) com o Pai – de onde jamais deveria ter saído – e ganha paz, liberdade, poder, verdadeira compreensão do que é amar e ser amado, e a vida eterna por herança com todos os seus tesouros. Em grego havia várias palavras para “amor”. Jesus não está pedindo que sintamos storge, “afeição natural”, nem philia, “amor amizade”, nem muito menos eros, “amor romântico, erótico, sensual”. A expressão usada por Jesus foi agape, que significa o amor perdão, misericórdia, graça, compreensão, paciência, sacrifício. O amor que Deus tem pela humanidade e que Jesus demonstrou diante dos seus oponentes, carrascos e executores. Um amor justo, mas compassivo, que não é atraído pelo mérito da pessoa amada, mas sim pelo fato de que o cristão recebe poder espiritual para “ser uma pessoa amorosa, misericordiosa”; e, portanto, pode suportar e perdoar os demais seres humanos e suas ofensas. Mateus mostra que as pessoas têm disposição natural para amar seu amigo e odiar seu inimigo (Mt 5.43), não é de admirar tantas guerras, terrorismos e violência assolando o mundo em nosso século assim como o foi na antigüidade. Jesus, entretanto, vai além, para o cerne da vontade de Deus, e revela que seu discípulo não pode ser seletivo quanto ao amor agape, mas deve amar inclusive o seu mais odioso e repugnante inimigo. E não basta refrear os atos hostis ou vingativos, é preciso “fazer o bem aos que vos odeiam”. Não é difícil imaginar a expressão no rosto daqueles discípulos, judeus nacionalistas e guerreiros, ao ouvir seu mestre dizendo que deveriam ser pacíficos e cordiais com o dominador romano. E Jesus ainda acrescenta: abençoem os que os amaldiçoam; e orem (só orem) por aqueles que falam mal a seu respeito, espalhando mentiras e calúnias.
  • 29. Ao que te ferir em uma face, oferece-lhe também a outra; e ao que te tomar a capa, não proíba de tirar-lhe a túnica também. Lc 6:29
    A expressão grega original transliterada siagon, aqui e em várias versões traduzida por “face”, mais propriamente se refere ao queixo. Portanto, Jesus está falando de levar um soco no lado do queixo. A reação natural diante de um ataque como esse, é ferir o agressor da mesma maneira, aliás, como era previsto pela Lei (Êx 21:12 -35). Jesus está se referindo à atitude; ou seja, ao sermos decepcionados, traídos ou mesmo agredidos, não devemos guardar amargura contra a humanidade e generalizar uma prevenção odiosa contra todas as pessoas; mas, sim, abrir-nos para novos relacionamentos (dar a outra face, mudar de lado). Contudo, oferecer – literalmente – o rosto para um outro golpe nem sempre será a melhor maneira de cumprir esse mandamento. Afinal, o próprio Senhor nos deu um exemplo ao ser golpeado no rosto (Jo 18:22 -23). Quanto à capa (em grego: himation), que era a roupa externa usual, e a túnica (em grego: chiton), normalmente a veste interna, elas representam alguns de nossos mais importantes e necessários bens materiais. No entanto, Jesus nos ensina que – seremos felizes (benditos) – quando o amor agape nos controlar, a ponto de não reagirmos com ódio, ou qualquer tipo de retaliação, quando alguém – por qualquer motivo – nos privar ou roubar qualquer de nossos pertences, ainda que mais caros. Esse é um ótimo conselho diante do crescente número de furtos e assaltos em nossos dias.
  • 30. Dá para cada homem que te pedir; e aquele que levar os seus bens, não os perguntes novamente.
  • 31. E assim como quereis que os homens vos façam, fazei-lhes igualmente.
  • 32. Porque, se amardes os que vos amam, qual é o vosso reconhecimento? Pois os pecadores também amam os que os amam.
  • 33. E se fizerdes bem aos que vos fazem bem, qual é o vosso reconhecimento? Pois os pecadores também fazem o mesmo.
  • 34. E se emprestardes àqueles de quem esperais receber, qual é o vosso reconhecimento? Pois os pecadores também emprestam aos pecadores, para novamente receberem com muito. Lc 6:34
    Mais uma vez é importante observar o “espírito do ensino” de Jesus, e não querer ser mais real do que o Rei, literalizando as figuras de linguagem do mestre. Se os cristãos tivessem que agir, com total literalidade neste caso, haveria uma classe de “santos indigentes” perambulando pelas cidades do mundo inteiro, e outra classe de “incrédulos e prósperos ladrões”. O que Jesus está enfatizando é que seu discípulo, por amor, jamais deve perder o sentimento de colaboração, ajuda e graça. O cristão deve estar sempre pronto a dar e a contribuir com todas as suas posses se for necessário. Entretanto, esse não é um ato meramente automático e sem reflexão, pois em muitos casos, dar não seria a melhor forma de amar. O verdadeiro amor – aquele que se preocupa com a real felicidade da outra pessoa – deve ser o juiz que decidirá se devemos dar ou reter em cada uma das situações da vida, e não a estima que temos por nossos bens. O verbo “dar” no grego original está num tempo contínuo, o que reforça a idéia de que este não é um ato ou impulso de generosidade ocasional, mas sim uma atitude habitual. Um estilo de vida. Jesus resume com sua regra de ouro: faça aos outros o que gostaria que as pessoas lhe fizessem. Esse é um princípio judaico ensinado desde muito antes do nascimento de Cristo. Entretanto, sempre fora pregado pelos sábios em sua forma negativa: “O que é odioso a ti, não faz ao teu próximo: isto é a Torá inteira, o restante é comentário disto” (Hillel em Shabbãth 31.a). Jesus foi o primeiro a dar um sentido totalmente positivo a este ensino áureo: não basta ao discípulo evitar atos que não gostaria que alguém praticasse contra ele. Os cristãos devem ser pró-ativos na prática do bem. Jesus ilustra sua exortação para que os cristãos sejam mais humanos (refletissem mais a imago Dei – imagem de Deus) do que os pagãos. Pois, até mesmo, pessoas que não professam qualquer religiosidade ou fé em Deus, praticam certas virtudes. Amam aos que as amam, retribuem o bem que lhes é feito e emprestam, especialmente se podem ter certeza de recebê-los de volta. O verbo original usado neste trecho indica um “emprestar sob juros”. Se os cristãos assim procederem, não estão fazendo mais do que o mundo faz.
  • 35. Amai, pois, a vossos inimigos, e fazei bem, e emprestai, sem nada esperardes novamente, e será grande a vossa recompensa, e sereis filhos do Altíssimo; porque ele é bondoso para com os ingratos e para com os maus.
  • 36. Sede, pois, misericordiosos, assim como vosso Pai também é misericordioso. Lc 6:36
    Em resumo, Jesus nos orienta a tomar seus mandamentos pelo lado positivo e de forma pró-ativa: “amai aos vossos inimigos, fazei o bem e emprestai”. Como cristãos sempre devemos nos antecipar na prática e defesa do bem. O verbo grego original, aqui transliterado por alpelpizo, é usado no sentido de “não desesperar-se”, e não com o significado de “sem esperar nenhuma paga”, como aparece em várias versões bíblicas. Os cristãos devem emprestar, de forma justa, como um ato de louvor e serviço a Deus e ao próximo, sem nunca se desesperarem por nada e por ninguém. O Senhor nos conclama a nunca servir, tendo em vista uma recompensa – ainda que seja um galardão no céu – pois, se assim agirmos, estaremos simplesmente trocando o egoísmo e a vaidade material pelo espiritual. Deus é benigno e misericordioso até para com os ímpios, pois lhes proporciona suas boas dádivas, tais como o sol, a chuva, o solo fértil e a boa colheita, na expectativa de que essas almas – um dia – percebam seu amor e salvação. O sonho de Deus é que todos os seus filhos fossem como Jesus é em relação ao seu Pai. A pe/neição de Deus deve ser nosso grande exemplo de vida (Mt 5.9,48).
  • O Julgamento ao Próximo
  • 37. Não julgueis, e não sereis julgados; não condeneis, e não sereis condenados; perdoai, e sereis perdoados;
  • 38. dai, e vos será dado, boa medida, apertada, remexida e transbordante, vos darão no vosso regaço; porque com a mesma medida com que medis vos medirão novamente. Lc 6:38
    O cristão não deve censurar, muito menos se entregar aos comentários sobre a vida de qualquer pessoa, com o propósito de destruir sua reputação e levar ao desprezo o seu caráter. O julgamento dos motivos íntimos de alguém, bem como qualquer vingança ou pena a serem aplicadas, pertencem ao Senhor (Rm 12.19). Entretanto, não estamos isentos da responsabilidade de desenvolvermos senso crítico sobre tudo e todos, bem como discernirmos quanto ao certo e o errado (Lc 6:43 -45). Afinal, foi essa a escolha feita pela humanidade no jardim do Éden (Gn 3). Contudo, Jesus nos exorta a não agirmos com hipocrisia, como é próprio dos incrédulos. O perdão, em vez de condenação, revela o verdadeiro amor cristão em exercício. Jesus salienta que a pessoa perdoada e salva tem um coração aberto e generoso. Esse estilo de vida sensibilizará a Deus e aos homens, e uma correspondência de bênçãos será inevitável. E não apenas na mesma proporção, mas tão abundante que transbordará. Jesus tira essa metáfora a partir da maneira usada pela multidão que estava à sua volta naquele momento, para quantificar e qualificar os grãos colhidos. A expressão grega aplicada aqui e transliterada por kolpon, tem a ver com as expressões: “boa medida” e “generosamente”, referindo-se a uma espécie de bolsa, que se fazia ao dobrar parte da veste externa ou com uma peça de roupa gasta, que ficava pendurada sobre o cinto, e era usada para guardar uma medida de trigo. Jesus relembra o antigo dito dos sábios judeus: “Há mais felicidade em dar do que em receber” (Atos 20.35).
  • 39. E falou-lhe uma parábola: Pode um cego conduzir um cego? Não cairão ambos na cova? Lc 6:39
    Jesus faz uso de mais uma série de metáforas para ressaltar a importância de seus discípulos viverem acima da mediocridade dos religiosos formais. Este trecho adverte a todos nós sobre o perigo de condenarmos alguém, esquecendo-nos de que também somos réus de crimes semelhantes. Entretanto, a advertência maior é em relação aos líderes espirituais (Tg 3.1). Em primeiro lugar, somente aquele que anda na luz e pode ver com nitidez (Jo 8.12; 1Jo 1.7) consegue evitar os perigos do caminho e conduzir outros em segurança. Os jovens líderes devem ter paciência e humildade para esperar o devido tempo, quando serão – se aprovados por Deus e pela vida – semelhantes aos seus mestres. Da mesma maneira, o discípulo de Jesus deve estabelecer, como seu alvo pessoal, o ser semelhante a Ele. A expressão “bem instruído” (como aparece em algumas versões), vem do grego: katartizo, que tem um significado mais amplo: “tornar digno” ou “completo”. É um termo normalmente usado para consertar algo que foi quebrado (Mc 1.19), ou no sentido de “suprir plenamente” (como quando o mundo foi “plenamente formado” – Hb 11.3). O discípulo de Jesus, tenha a experiência e a formação acadêmica que tiver, não pode relegar o mandamento do amor a segundo plano, acreditando que – de alguma forma – está acima do nível de servo que deve seu amor a Deus e ao próximo.
  • 40. O discípulo não está acima do seu mestre; mas todo o que for pe/neito será como o seu mestre.
  • 41. E por que tu reparas no cisco que está no olho de teu irmão, e não reparas na viga que está no teu próprio olho?
  • 42. Ou como podes dizer a teu irmão: Irmão, deixa-me tirar o cisco que está no teu próprio olho, não reparando tu mesmo na viga que está no teu olho? Hipócrita, tira primeiro a viga do teu próprio olho, e, então, verás claramente para tirar o cisco que está no olho de teu irmão. Lc 6:42
    Jesus retoma outro antigo ensino dos rabinos judeus, com certo toque de humor, uma vez que usa a paródia para evidenciar seu ponto de vista. Retrata o hipócrita com um enorme tronco (trave ou viga) projetando-se do seu olho, enquanto busca, cuidadosamente, tirar uma partícula do olho do seu irmão. Freqüentemente as atitudes egoístas, arrogantes e preconceituosas dos seres humanos chegam a ser hilariantes, devido ao evidente contra-senso por elas transmitido. Contudo, a lição apresentada por Jesus é muito séria: a leve impe/neição ou erro de outras pessoas é freqüentemente mais notado por nós, do que um grande defeito ou pecado em nós mesmos. O verbo “reparar” vem do original grego blepeis que significa: atenção e observação prolongadas. Jesus nos exorta a um rígido auto-exame antes de nos lançarmos ao julgamento de qualquer um de nossos semelhantes.
  • A Árvore e seu Fruto
  • 43. Porque não há árvore boa que produza mau fruto, nem árvore má que produza bom fruto.
  • 44. Porque toda árvore é reconhecida pelo seu próprio fruto. Porque dos espinhos o homem não colhe figos, nem de um arbusto se colhe uvas.
  • 45. O homem bom, do bom tesouro do seu coração tira o que é bom, e o homem mau, do mau tesouro do seu coração tira o que é mau; porque da abundância do seu coração fala a boca. Lc 6:45
    Jesus frisa que o caráter de uma pessoa não pode ser alterado apenas por força de vontade ou pelas circunstâncias. Somente o novo nascimento, que é a invocação e a habitação do Espírito de Deus em nossa alma (Jo 3.5; 15.5,16), pode transformar a essência das pessoas e desenvolver um ser humano celestial (cidadão do Reino). Jesus nos faz lembrar do ensino do profeta Jeremias, sobre a maldade que reside no coração do homem (Jr 17.9), acerca da qual Paulo também nos adverte (Rm 3.23), para nos legar um princípio fundamental ao conhecimento da pessoa humana: “a boca fala do que está repleto o coração”. Ou seja, nossas palavras revelam quem somos na realidade, em nosso íntimo. Por isso, mais do que um cuidado com a língua, precisamos avaliar corretamente o centro das nossas emoções e sentimentos (para os ocidentais modernos: o coração, mas no oriente antigo: os intestinos). Portanto, no amor e nos negócios é bom ouvir muito, e bem, antes de celebrar sociedade.
  • O Prudente e o Insensato
  • 46. E por que me chamais, Senhor, Senhor, e não fazeis as coisas que eu digo?
  • 47. Todo aquele que vem a mim, e ouve as minhas palavras, e as pratica, eu vos mostrarei a quem ele é semelhante.
  • 48. Ele é semelhante a um homem que edificou uma casa, e cavou fundo, e pôs os alicerces sobre a rocha; e, vindo a enchente, a corrente batia veementemente sobre aquela casa, e não a pôde abalar, pois esta estava fundada sobre a rocha.É como se fosse um homem que, ao construir sua casa, cavou fundo e firmou os alicerces sobre a rocha. E sobrevindo grande enchente, o rio transbordou e as muitas águas avançaram sobre aquela casa, mas a casa não se abalou, por ter sido solidamente edificada.
  • 49. Mas o que ouve e não pratica é semelhante a um homem que edificou uma casa sobre a terra, sem alicerces; na qual a corrente batia veementemente, e imediatamente desabou; e foi grande a ruína daquela casa. Lc 6:49
    Alguns discípulos já mostravam sinais de falsidade e deslealdade, pois o chamavam formalmente de “Senhor” (em grego: kurios), que significa “mestre a quem se deve seguir com lealdade absoluta”, mas não praticavam o que Ele lhes ensinava. É possível que Jesus tenha repetido este sermão em outra ocasião, porém com o mesmo sentido, pois em Mateus a diferença entre os dois homens da parábola, é que escolheram terrenos diferentes para construir (Mt 7:24 -27), e aqui, diferem quanto à maneira de edificar sobre os terrenos. Embora Jesus esteja advertindo que um bom alicerce é vital nas horas de provação e dificuldades proporcionadas pela vida, seu principal objetivo é alertar para o teste supremo, no Juízo final, quando somente sobreviverão aqueles que estiverem firmados na Rocha, que é o Filho de Deus (1Co 3.11).